Medindo Sons e Acordes

Da pretensão da Ciência em estudar objetivamente a música emerge a necessidade de uma abordagem não simplificada e simplista do fenômeno sonoro

Quando nos referimos às atividades científicas, o senso comum e alguns pesquisadores atribuem aos resultados das suas pesquisas um conhecimento produzido por procedimentos objetivos. Este saber, com o aval da Ciência, é considerado "verdadeiro" por ter sido gerado sem a influência de qualquer tipo de subjetividade. Dessa forma, o conhecimento científico dos fenômenos adquire legitimidade por possuir alguns postulados básicos implícitos: objetividade, neutralidade, conceitos, teorias, hipóteses, indução, verificabilidade, etc.

Antes de discorrermos sobre alguns desses postulados básicos da Ciência, cabe aqui uma questão: é possível tal abordagem científica quando o objeto é a música? Isto é, como podemos manter a objetividade científica nos termos das ciências positivistas ou neo-positivistas para este produto humano?

Podemos dividir a atividade científica ou a produção do conhecimento, basicamente, em dois grupos: 1) as ciências empíricas, que necessitam de dados provenientes do mundo sensível para a formulação de suas afirmações, descrevendo e explicando os fenômenos, criando teorias e fundamentando-as em bases empíricas, constituídas, principalmente, pela observação sistemática e pela experimentação; 2) as ciências não empíricas, como, por exemplo, a Matemática e a Lógica.

A ciência empírica subdivide-se em Ciências Naturais (Física, Química, Biologia) e Ciências Sociais (Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Economia, Historiografia). Ora, quando se pretende transformar a música em um objeto da Ciência, é decisivo verificar se ela pode ser investigada pelos métodos que constituem as áreas descritas acima, principalmente, pelo método das Ciências Naturais. Deve-se perscrutar, em igual medida, em quais ramos da Ciência a música pode melhor se adequar, bem como se as hipóteses e as teorias formuladas para o objeto música podem ser consideradas científicas, portanto, comprováveis e compatíveis com o conhecimento científico.

Logo de início, podemos comparar a música, enquanto Ciência, à Psicologia. A música, como a Psicologia, não possui uma delimitação muito clara no que concerne à sua total adesão às Ciências Naturais ou às Ciências Sociais. Analogamente à Psicologia, a música parece permear as duas grandes áreas da ciência empírica. A música como fenômeno acústico pode ser investigada pelas leis da Física, e como fenômeno sonoro-cultural, pelas Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Economia). O fenômeno sonoro-musical ainda pode ser objeto da própria Psicologia, que se situa entre as duas áreas das ciências empíricas, emergindo daí a Psicologia da Música, uma ciência híbrida que pode se desdobrar ainda em outra disciplina denominada psicoacústica.

Uma teoria deve poder ser submetida a testes, para que assim possa ser refutada. Buscar a sua refutação é o que lhe dá o status de cientificidade

Mas nada nos impede de abordar a música pelas ciências não empíricas, por meio de uma concepção matematizante parecida com as especulações realizadas por Pitágoras no século VI a.C., pois em música está implícito um pensamento lógico-matemático que possibilita a sua compreensão e transmissão através dos números. Indo mais além, é cabível ainda investigar a música pelas ditas Ciências Humanas, pela Filosofia e pela Ética1. Abordar a música pela perspectiva da Ética é aproximá- la da concepção platônica de música, moralista, trazendo à luz discussões maniqueístas (bem e mal), ou seja, a música com o poder para agir na educação e na formação do caráter do homem e como promotora do bem-estar físico, psíquico e emocional do indivíduo. Abordar a música pela perspectiva da Filosofia (stricto sensu) é voltar-se para as especulações sobre a essência da música, sua possibilidade de constituir-se linguagem, de promover comunicação2. Ainda, é refletir sobre alguns aspectos importantes do fazer musical, tais como sensação, sentimento, gosto, tempo, espaço, imaginação, matéria, símbolo, linguagem, etc.

Tudo indica que estamos diante de um fenômeno complexo da cultura que é transformado em construto3 da atividade científica por algumas áreas que almejam o status de cientificidade, para assim gozar um lugar nas universidades. Dessa forma, convém aprofundarmos um pouco mais as discussões sobre os problemas da Ciência, dos seus postulados, começando por analisar o duo ciência e objetividade, sempre em analogia com a música.

CRITÉRIOS DE VERDADE

Definir Ciência e objetividade científica é tão problemático quanto qualquer tentativa de definir outros fenômenos, como, por exemplo, a própria música. Toda definição é um tipo de delimitação, de circunscrever o campo de atuação e a funcionalidade dos fenômenos. Definir é eleger um problema, e, muitas vezes, torna-se um empreendimento positivista, isto é, busca a resposta para a pergunta: o que é isso? Todavia, não se defende totalmente a impossibilidade da criação de definições para os fenômenos segundo o postulado de Heidegger4, a saber: definir o fenômeno e nomeá-lo é velar, esconder o ser do ente. Em alguns casos, a tese heideggeriana parece cabível, principalmente quando se trata de produções artísticas.

1 Diante da diversidade de classificação das ciências, opto por uma distinção entre Ciências Humanas e Sociais elaborada por Allan P. Merriam no livro: Antropologia della Musica (ver bibliografia). A primeira estende-se no âmbito das artes: Música, Dança, Literatura, Teatro, Artes visuais, Arquitetura, Filosofia e Religião. A segunda compreende a Sociologia, Economia, Antropologia e Ciência Política.
2 Para uma discussão sobre a linguagem em música ver as obras: PIANA, Giovanni. Filosofia da Música. Bauru: EDUSC, 2001; e HANSLICK, Eduard. Do Belo Musical. Campinas: Unicamp, 1992, 2º ed.
3 Construto ou 'objeto conceitual' é uma criação mental (cerebral), porém diferente de um objeto mental ou psíquico, como uma percepção, lembrança ou invenção (Bunge, 1987).
4 Uma abordagem heideggeriana para o fenômeno musical necessita de uma melhor investigação.

Segundo Hilton Japiassu, no livro O mito da neutralidade científica, podemos compreender a Ciência, bem como a atividade do cientista das seguintes formas: 1) a ciência como o ideal romântico da busca desinteressada pelo conhecimento verdadeiro; 2) um tipo de especulação; 3) um tipo de atividade reservada apenas para as Ciências Naturais, proscrevendo assim as Ciências Humanas e Sociais do status científico.

Por este último viés, podemos inferir que a música estaria descartada de qualquer abordagem científica. É importante ressaltar que o conhecimento científico, em nossa concepção, é uma forma de produção de conhecimento e não "a" forma de desvelar a verdade; além do que, discutir verdade é uma tarefa árdua a que os filósofos (sobretudo) se dedicam desde a emergência do que se denominou Filosofia na Antigüidade Grega.

Todavia, a noção do senso comum sobre a Ciência como um conhecimento comprovado, uma verdade absoluta, parece ainda prevalecer no ideal de quem a pratica e dos que se aventuram nessa área de produção do saber. De acordo com Japiassu (1975): "a ciência é um conjunto de conhecimentos "puros" ou aplicados produzidos por métodos [rigorosos, comprovados e objetivos], fazendo-nos captar a realidade de um modo distinto da maneira como a Filosofia, a arte, a política ou a mística a percebem".

Pela assertiva do próprio autor, essa definição é uma concepção do senso comum sobre o que é Ciência. Contudo, algumas áreas do conhecimento que tentam conhecer a música por um viés científico estão almejando que o conhecimento da música-objeto contenha, igualmente ao conhecimento gerado pelas Ciências Naturais, um tipo de "pureza", livre de qualquer subjetividade e possuidora de neutralidade científica por parte do pesquisador musical. Em outras palavras, como se pudéssemos rechaçar a relação do homem com a música, eliminando a sua subjetividade, constituinte indispensável do fazer artístico, dotando-a de uma linguagem sui generis. A arte é um produto humano cujas tentativas de interpretação possuem grandes probabilidades de fracasso.

FENÔMENO CULTURAL

Inferimos que manter essa concepção de Ciência para a música revela certa ingenuidade epistemológica, pois é querer pressupor que a música pode ser compreendida sem levar em consideração os valores e as convenções que dão significado à linguagem musical. Se não podemos falar em conhecimento puro, neutralidade e objetividade nas ciências em geral, tampouco se pode reportar à música com essa concepção, pois ela é produto da cultura, um produto do homem. Assim como em toda prática científica, a objetividade para o objeto-música é apenas um ideal a ser alcançado.

Para Japiassu, é possível falar em "objetivação da ciência" no sentido de uma objetividade aproximada, de um esforço em conhecer a realidade naquilo que ela é e não no que gostaríamos que ela fosse. Investigar a música sem considerar tais aspectos é desconsiderar os limites da razão e utilizar o conceito de objetividade do senso comum com a ilusão de que, transformando a música em objeto científico, estaríamos sendo objetivos e eliminando dela os juízos de valor, interpretados e vistos de forma negativa pela Ciência.

Após essa investigação inicial sobre o conceito de Ciência e objetividade, é possível inferir que a música não pode ser exclusividade das ciências empíricas (Naturais e Sociais), pois, como um fenômeno da cultura, está permeada de valorações singulares por parte de quem a significa, isto é, o ouvinte. Também não se pode pensá-la em uma concepção puramente matemática e metafísica, como fizeram os pitagóricos (música das esferas), bem como Platão (a música intelectível, pensada, superior à música sensível), pois a música é um fenômeno do mundo sensível, é percepção. Mas não necessariamente sentimento e significado.5

Neste ponto do texto podemos voltar à nossa questão inicial: é possível uma abordagem científica para a música? Isto é, como podemos manter a objetividade científica nos termos das ciências positivistas ou neopositivistas para este produto humanístico?

Abordar cientificamente a música é mutilar, fragmentar as diversas implicações que ela tem para o homem. Dessa forma, uma concepção naturalista da Ciência em música, analisando-a, por exemplo, apenas como ondas sonoras que afetam o homem desta ou daquela maneira, é buscar uma objetividade inexistente e simplista para o fenômeno sonoro, visto que a objetividade em Ciência é apenas um ideal. Do mesmo modo, abordar a música e compreendê-la como um produto da cultura, em uma abordagem das Ciências Sociais, que pressupõe a possibilidade de conhecê-la proscrevendo suas valorações, também não é satisfatório. Quando Max Weber propõe que uma disciplina só é científica quando elimina as interferências dos juízos de valor, realizando a separação sujeito/objeto para angariar a neutralidade científica, não considera que esta, juntamente com a objetividade, bases da Ciência, constituem apenas um ideal para as Ciências Humanas ou Sociais.

Karl Popper acredita que a formulação de hipóteses é fundamental para a observação, caso contrário, o que se faz é apenas uma observação ingênua

Em relação à música, tal concepção é quase uma utopia, pois "música" não é somente ondas sonoras quantificáveis e tampouco obra da natureza. Embora, se quisermos, encontramos música onde a nossa imaginação e a nossa inclinação poética desejar, isto é, no canto dos pássaros, nos sons das cachoeiras, no choro de uma criança, no esboço rudimentar de quem se inicia na atividade musical, no silêncio murmurante de uma floresta encantada etc.

Quando refletimos sobre o uso que se faz da música por algumas áreas do conhecimento, por exemplo, do saber acadêmico, percebe-se a existência de uma praxeologia (teoria geral da ação humana) na concepção da ciência musical. Isto é, as técnicas que perfazem tais áreas de investigação musical são de intervenção, um saber que visa o comportamento humano, ou seja, conhecer o homem utilizando-se do evento musical como um simples instrumento. Portanto, quando se postulam teorias para o objeto musical, nota-se uma confusão entre leis empíricas e as teorias que visam justificá-las. Por exemplo, os acordes menores6 provocam um estado de tristeza no ouvinte, melancolia, ao passo que acordes maiores provocam alegria. Essa lei empírica é utilizada de modo equívoco como teoria, sendo formulada por observação, visando fundamentar algumas técnicas e métodos de aplicação terapêutica, por exemplo.

5 Sobre a relação entre música e sentimento ver: HANSLICK, Eduard Do belo musical. Campinas: Unicamp, 1997.
6 O termo menor e maior, para a teoria musical, não é um termo subjetivo, valorativo, mas refere-se à estrutura de um acorde. Exemplificando na tonalidade de Dó, o acorde maior possui, no mínimo, três notas, a saber: a Tônica (Dó); a Terça maior (Mi), e a Quinta justa (Sol). O acorde menor possui a Tônica (Dó); a Terça menor (Mib) e a Quinta Justa (Sol). O termo menor ou maior é referente à terceira nota de uma escala musical.

É difícil apontar critérios precisos para diferenciar uma boa teoria científica de uma má, contudo, alguns atribuem que a verificabilidade e o método indutivo são fundamentais para separar a Ciência da pseudociência (muito mais para rechaçar as especulações metafísicas carentes de significado). Uma boa teoria científica deve vincular-se às leis empíricas e ter como objetivo esclarecê-las. Esta é a concepção do positivismo lógico, criado e defendido pelo Círculo de Viena. Assim, a verificabilidade torna-se critério para uma teoria ser ou não científica, para dar significado a uma proposição.

Apesar disso, será que a verificabilidade pode ser o critério para uma teoria ser científica? Quais as implicações da crítica da verificabilidade para a construção das teorias musicais? A título de exemplificação, a musicoterapia, enquanto uma área que almeja a cientificidade, possui um critério de demarcação científica? Isto é, o método indutivo é o seu critério de demarcação? Mas, antes, convém discorrer um pouco mais sobre o problema da indução e do verificacionismo para posteriormente nos remetermos ao nosso exemplo de uma área que tem a música com objeto de investigação.

Talvez o maior crítico da verificação como demarcação da ciência seja o filósofo Karl Popper que, embora não colaborando diretamente com o Círculo de Viena, manteve contato com alguns dos seus participantes por meio das suas críticas. Além de crítico da verificabilidade, Popper também não aceitou a lógica indutiva para os processos de aquisição de conhecimento. Sendo assim, o critério de demarcação da Ciência recebe do filósofo uma outra concepção, que contradiz com a tentativa das ciências musicais de retirar da música suas dimensões metafísicas, ou melhor, a tentativa de construir um objeto-música por uma ciência naturalizada do fenômeno sonoro.

SUJEITO E OBJETO NAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
A concepção clássica da Ciência que separa o sujeito do objeto não condiz com as Ciências Humanas e Sociais, em que o sujeito é igualmente objeto. Não há dúvidas de que a música, enquanto fenômeno acústico quantificável, é passível de elaboração de modelos experimentais, mas em absoluto pressupõe a vigência da conhecida distinção sujeito/objeto. A música não existe na natureza (embora, metaforicamente, podemos proporcionar significado para todo fenômeno sonoro), não existe independente do homem - embora muitos buscam uma abordagem naturalizada para a "Ciência da música

O problema da indução já tinha sido abordado pelo filósofo David Hume, talvez um dos seus principais críticos, na medida em que apresentou o problema lógico de elaborações teóricas ou hipóteses partindo de enunciados particulares. Hume investiga o problema de se estabelecer verdades partindo somente da experiência, da observação de fatos para a construção de leis gerais. Nesse sentido, será que partindo de observações regulares, sistemáticas de um determinado fenômeno, não importando quantas sejam tais observações ou experimentos, haveria uma lógica que possibilitaria elaborar uma inferência indutiva do fato? Segundo Popper (1980), "de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que estejamos justificados ao inferir enunciados universais a partir dos singulares, por mais elevado que seja o número destes últimos; pois qualquer conclusão obtida desta maneira pode sempre acabar sendo falsa: não importa quantas instâncias de cisnes brancos possamos ter observado, isto não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos".

É importante ressaltar que o conhecimento científico é uma forma de produção de conhecimento e não "a" forma de desvelar a verdade

Popper postula também que a formulação de hipóteses é fundamental para a observação, caso contrário, o que se faz é apenas uma observação ingênua. Esta concepção de ciência partindo da observação, da experiência, para a formulação das teorias, é como o alemão Rudolf Carnap, representante do Círculo de Viena, concebia o fazer científico. Mas será esse o caminho seguro para a construção de hipóteses, leis gerais e teorias científicas? O método indutivo legitima a separação entre ciência e pseudociência?

De acordo com Popper, as leis gerais construídas pela experiência não podem prescindir de hipóteses prévias. Além disso, não existe observação pura - toda observação é uma percepção e possui uma expectativa -, a expectativa é o equivalente biológico do termo epistemológico "hipótese" ou "conjectura". Ainda segundo ele, uma hipótese é, em certa medida, uma expectativa. Portanto, toda percepção e observação são expectativas do que ocorre a cada segundo observado de um fenômeno - não há, assim, observação sem hipótese. Uma ciência que parte da observação está errada.

O que é ou não científico não deveria ter a verificabilidade e a indução como critérios de demarcação, mas a refutabilidade empírica. A teoria científica deve buscar falsear suas proposições, portanto deve ter uma capacidade crítica.

Para Popper (1980): "uma teoria deve ser reconhecida como científica na medida em que for possível deduzir dela proposições observacionais singulares, cuja falsidade seria, pois, prova conclusiva da falsidade da teoria. Por outro lado, se uma teoria não provê meios para uma possível refutação empírica, se não há experiência capaz de refutá-la, deve ser reconhecida com um mito, explicação pseudocientífica do real. A atitude científica diante de uma hipótese não consiste, pois, em procurar casos particulares que a confirmem, mas procurar casos que, se ocorressem, falsificariam a hipótese".

Devemos ressaltar que Popper, embora coloque a capacidade de testar uma hipótese como demarcação da Ciência, não atribui que as especulações metafísicas sejam carentes de significado, como assim o fizeram os positivistas lógicos, porque o que é mito e metafísica pode vir a ser científico em um período posterior.

Assim, como a crítica de verificabilidade e da indução como critério para Ciência implica para áreas que têm a música como objeto científico? Ora, a partir do momento que se pretende construir teorias científicas para a música, depara-se com o problema da demarcação, como vimos acima, pois tais teorias necessitam também ser observacionais, para não serem taxadas de pseudocientíficas. Isto significa que as proposições científicas em música devem excluir a metafísica. Novamente retornamos aos problemas iniciais deste ensaio: é possível fazer Ciência da música, conhecê-la pelos métodos científicos neo-positivistas? Em que nos auxilia o novo critério de demarcação de Popper para abordarmos a música cientificamente? É possível abandonar os significados metafísicos da percepção sonora?

TESTAR HIPÓTESES

Diante do que vimos acima, ainda devemos formular outras questões: áreas como a musicoterapia (área do conhecimento que busca o status de cientificidade) utilizam o método indutivo para construção de suas teorias? Indo mais além, os pesquisadores partem de uma observação ingênua, sem nenhuma hipótese prévia para elaborar suas leis gerais?

Mais ainda, outra questão que concerne ao problema da verificação como critério de demarcação é a sua capacidade de explicar qualquer fenômeno à luz de uma determinada teoria. Convém determo-nos um pouco neste ponto e averiguar o que Popper tem a nos ensinar sobre o problema da verificação e da capacidade de explicação de uma teoria. Segundo ele, "o mais característico da situação parecia ser o fluxo incessante de confirmações, de observações que "verificam" as teorias em questão, ponto que era enfatizado constantemente: um marxista não abria um jornal sem encontrar em cada página evidência a confirmar sua interpretação da história. Essa evidência era detectada não só nas notícias, mas também na forma como eram apresentadas pelo jornal - que revelava seu preconceito de classe - e, sobretudo, naquilo que o jornal não mencionava. Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias eram constantemente verificadas por "observações clínicas" [...] Era precisamente esse fato - elas sempre serviam e eram sempre confirmadas - que constituía o mais forte argumento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na verdade, uma fraqueza" (Popper, 1994).

Quando refletimos sobre o uso da música pelo saber acadêmico, percebe-se a existência de uma praxeologia na concepção da ciência musical

Uma teoria, para ser científica, deve possuir a capacidade de ser submetida a testes para que assim possa ser refutada, isto é, falseada. Buscar a sua refutação é o que lhe dá o status de cientificidade. Resistindo aos testes, ela é corroborada parcialmente até que seja novamente submetida a novas provas. Usar a falseabilidade como critério de demarcação para uma teoria científica é diferente de verificá-la. Esta última compreende e necessita da experiência, aquela, da capacidade de predição arriscada, de serem submetidas, muitas vezes, a testes indiretos.

Diante de todas as questões que emergiram neste ensaio evidencia-se a necessidade de uma epistemologia da música. Ou seja, uma investigação do processo de construção das teorias musicais utilizadas pelas áreas que vêem a música como um objeto científico; áreas que formulam teorias musicais para usá-la como ferramenta terapêutica legitimando-se nas concepções da Ciência tradicional. E, em igual medida, este ensaio aponta para os problemas que, muitas vezes, são ignorados no processo de conhecer o que se denomina música.

É por este motivo que necessitamos de outras abordagens para a música, como, por exemplo, por meio da teoria da complexidade de Edgar Morin, da Ciência novo-paradigmática e da transdisciplinaridade, no intuito de abarcarmos novas possibilidades teóricas para nos guiar no conhecimento desta área humanística do saber. Nesse sentido, é preciso compreender, cada vez mais, a necessidade de uma abordagem não simplificada e simplista do fenômeno sonoro, resgatando assim a complexidade da relação entre o homem, a natureza e suas criações.

Fonte: Revista Filosofia