Filosofia e Música

A música é um eterno fluir, um vir-a-ser de representações que obtemos em determinados momentos de contemplação sonora

É possível uma abordagem filosófica da música? Por serem muitos os objetos que o pensar filosófico se depara, a resposta a essa pergunta só poderia ser uma: sim! Dessa forma, diante do caráter afirmativo da resposta, outras questões se apresentam essenciais diante da árdua tarefa de filosofar partindo do fenômeno sonoro- musical. Qual a natureza do conhecimento que a reflexão filosófica proporciona através da música? Qual a validade desse conhecimento, haja vista as múltiplas funções da música que estão bem legitimadas nas sociedades contemporâneas, por exemplo, como promotora de prazer estético, como função terapêutica, integração social, relações econômicas, políticas e religiosas, bem como suporte para outras formas de artes: como a dança, o cinema, etc?

Sendo assim, a Filosofia contribui para o conhecimento do fenômeno musical, ou a ela compete apenas desvelar as peculiaridades e dimensões das várias sociedades? Como manter a universalidade e a racionalidade − características do filosofar ocidental − diante desse fazer humano particular e singular propenso aos mais divergentes juízos de valor? Indo mais além, o que é música perante as suas várias defi- nições histórico-culturais? Como podemos transformar a música em um objeto de investigação sabendo da dificuldade em conceituá-la? É possível uma epistemologia da música? A Filosofia da música, para ser Filosofia, deve necessariamente abordar as questões sobre o tempo, espaço, matéria e símbolo, conforme Giovanni Piana aponta em seu livro: A Filosofia da música?1 A esta lista de questões poderíamos somar tantas outras, mas, por ora, está de bom tamanho. É claro que não temos a pretensão de respondê-las neste artigo, mas são caminhos para pensar a relação, muitas vezes conflituosa, entre Filosofia e música.

Todavia, alguém poderá argumentar que ao formular tais questões já estaríamos no universo filosófico. Sendo assim, para sairmos dessa circularidade angustiante, deixemos, momentaneamente, estas dificuldades iniciais em compreender o que é fazer uma filosofia da música para adentrarmos no "pensar música" por alguma abertura que consideramos um fi- losofar. Alguns filósofos como Pitágoras, Arquitas de Tarento, Platão, Aristóteles, Aristóxeno, Santo Agostinho, Descartes, Rousseau e Nietzsche se depararam com o fenômeno musical em suas reflexões e especulações. Citando Platão, a música era parte da sua paidéia, como encontramos na obra A República. Como censor da poesia e das formas de artes que poderiam dificultar a formação de uma cidade justa conduzida por homens virtuosos, também as harmoníai (em uma concepção atual compreendemos este termo como "escala" musical, pois não havia na Grécia Antiga a idéia de "superposição de terças", isto é, acordes musicais) estariam sob o jugo do filósofo, por exemplo, os modos dóricos e frígios e que seriam os recomendados, pois formariam os guerreiros viris. Os modos lídios e jônicos seriam banidos da cidade, pois tornariam os homens efeminados e lânguidos.

É bem provável que Platão chegou a essa tipologia musical pela observação do comportamento, do modo de ser de pessoas que faziam uso destas escalas musicais.

Seria assim um preconceito do filósofo em relação aos hábitos e aos costumes de outras culturas? De fato, as especulações platônicas sobre a música tinham propostas ético-educativas sobremaneira rígidas. Um aspecto fundamental para os que se aventuram em uma filosofia da música está na própria concepção que os gregos davam à música. Música era Mousike: um complexo de atividades envolvendo a dança, a ginástica, o teatro, a poesia e o canto acompanhado de aulos e cítaras, portanto, não era uma "arte" autônoma.

Direcionemos este ensaio para uma questão mais específica do pensar música, saindo de uma perspectiva histórica para uma abordagem ontológica e fenomenológica, na qual vimos refletindo há algum tempo. Isso não significa que a concepção musical platônica não nos estimule a outros pensares profícuos. Ao depararmos com uma forma musical qualquer, vários fenômenos estão ocorrendo no momento da audição. Fenômenos internos (como pensamentos) e externos (outros sons percebidos, mas que não participam do fenômeno sonoro-musical ao qual direcionamos a atenção). A música, para muitos, é um fenômeno específico do mundo sensível, todavia, nada a impede que seja somente um fenômeno interno, do pensamento, principalmente em sujeitos onde predomina a abstração. Esta música abstrata para alguns é o suficiente para dar-lhes o prazer que, grosso modo, todos buscam na música. O fato é que estamos, enquanto existentes, diante de sons que são transformados em "música-metáfora" ou em sons sem significados. Questões: o que percebemos em uma audição e de que maneira construímos essa "música-metáfora"? Será que ouvimos sempre a mesma música em uma contemplação sonora? Ora, é óbvio que se tratando de uma música que tenha sido previamente gravada, continuará a mesma, mas, a sua representação, não. Mesmo que não tenhamos muita clareza deste devir da representação musical, ela se faz vigente entre a relação do ser que a percebe e do ser do fenômeno. Nesta perspectiva, o fenômeno musical é um ser-em-si, pleno e sem abertura.

Considerando o caráter intencional da consciência, esta se nadifica diante dos fenômenos do mundo e, igualmente, dos fenômenos musicais que, como vimos, é um em-si. Portanto, a consciência, como tem em sua estrutura o nada como fundamento (remetendo-nos aqui a Sartre), não se relaciona propriamente com a música enquanto um em-si, porém com a representação dela. A percepção do fenômeno musical, embora tenha a aparência de ser a mesma, absoluta, difere do conhecimento que dela fazemos, pois o que dela apreendemos é o devir das suas representações que ocorrem não no cogito pré-reflexivo, entretanto, em outra dimensão, no ser-para-si. A universalidade do juízo musical é assim uma impossibilidade. Parafraseando Sartre em sua definição do ser-para-si: "ela [a música]2 é o que não é e não é o que é".

A música é, assim, um eterno fluir, um vir-a-ser de representações que obtemos em determinados momentos de contemplação sonora. O ser da música sempre nos escapa, em razão de sua constante nadificação dada pelo cogito reflexivo, pela consciência. A nossa audição, o nosso juízo nunca será o mesmo e assim também o conhecimento que supostamente acreditamos ter de uma determinada música.

Prosseguindo nesta abordagem fi- losófico-cognitivo do fenômeno sonoro- musical, façamos uma analogia com outras formas artísticas, como, por exemplo, a pintura impressionista. As artes que usam a visão no processo de contemplação estética podem nos auxiliar no sentido de percebermos a mutabilidade e a dificuldade da cognição musical, porque na cultura ocidental há um predomínio na educação do olhar em detrimento do ouvir. No entanto, não podemos esquecer que contemplarmos a música e a sua representação (na consciência) é a maneira que dispomos para conhecê-la.

Muitos conhecem algumas obras impressionistas, por exemplo, a série The Rouen Cathedral, de Monet. O que o artista buscava nestas várias pinturas, o que nos escapa a cada percepção dessas imagens? Será o seu ser? Nas sucessivas observações apreendemos sempre a mesma catedral? Sendo a luminosidade o motivo que interfere na representação que fazemos do objeto, qual será o equivalente da luz para a música que a cada audição se transforma? O ser da música nos escapa como ocorre com a pintura impressionista. E é dessa forma que a equivocidade da música se dá pela intermitente nadificação do para-si, caracterizando a inefabilidade do fenômeno sonoro-musical.

Fonte: Revista Filosofia